Ana Cañas sobre álbum de releituras de Belchior: “É um prisma diferente daquele diamante colossal…”
Publicado em 4 de novembro de 2021
Ana Cañas lançou a aguardada coletânea de interpretações em homenagem à obra de Belchior. Com 14 faixas, a cantora e compositora paulista encontra sua própria maneira e linguagem para cantar músicas que fazem parte do imaginário brasileiro.
O Papelpop conversou com a artista sobre o projeto, que chegou alguns dias antes da estreia do programa “Sobrepostas”, no qual a cantora assume o papel de apresentadora pela primeira vez.
Sobre o primeiro contato de Ana com o trabalho de Belchior, a musicista revela ter sido a partir de uma interpretação de Elis Regina. “A minha primeira memória afetiva não foi através da voz dele, foi através da Elis quando eu era adolescente. Hoje estou com 41. Lembro de ouvir a Elis cantando ‘Como Nossos Pais’ e como isso me atravessou, mas até então eu não tinha feito a reflexão de quem era o Belchior, e que ele tinha escrito aquela letra. Eu fiquei muito presa na Elis Regina. E isso tem um diálogo muito forte quando eu volto para gravar esse disco e essa música também. Foi um impacto muito grande”, conta.
“Eu mergulhei no universo do Belchior recentemente, tem uns cinco anos. Comecei a ouvir os discos e selecionei uma música dele pra cantar nos meus shows. Estava num momento muito ligado à militância, fazendo shows em vários coletivos, na periferia, na quebrada. Me posicionando politicamente, abertamente, num momento em que muita gente ainda tinha medo de se posicionar”, relembra a cantora. “’Alucinação’, pra mim, era uma música muito contundente, muito atual. Ela fazia uma leitura do coletivo, do social, da intersecção, das misérias das cidades e da poesia também, da Babilônia.”
Assim, a ideia do álbum surgiu organicamente. Na última meia década, Ana interpretou canções do artista durante seus shows. Naturalmente, o público pedia pela gravação de um registro que trouxesse tais performances. Isso foi potencializado quando, durante a quarentena, decidiu fazer uma live cantando Belchior.“Eu não achava que tinha outro compositor mais atual, mais visceral, mais contundente nesse momento de pandemia – nessa distopia que a gente está vivendo, do que o Belchior”, explica Ana.
Sobre a contemporaneidade das canções, a artista explica que fez o exercício de reflexão e mergulho na obra belchiorana. Uma extensa pesquisa, que envolve a discografia, os livros, entrevistas e elementos que orbitam este universo musical e poético.
“O Belchior escreveu ‘Alucinação’ em 1976. Nessa época, a gente estava no auge da ditadura militar no Brasil. E já tinha rolado o ato institucional número cinco. Já tinham artistas exilados do país. Então, esse diálogo do Belchior com o hoje e o agora faz muito sentido com esse governo. É lógico que a poesia dele é atemporal. É lógico que ele conseguiu extrair a amálgama humana nos seus versos. Mas também tem esse cenário, essa moldura de opressão, de cerceamento de violência e tudo mais. Não por acaso que o Belchior volta à tona nesse momento, nesse cenário que a gente vive hoje.”
“Quando ele decide fazer um exílio nos últimos dez anos da sua vida, eu acho que ele passa uma mensagem. Os fãs ficaram sentidos com isso, porque ele desapareceu da vida social, do convívio em família. Ninguém sabia onde ele estava e o que estava acontecendo. Esse autoexílio nunca foi explicado”, relembra.
Apesar das diversas teorias e de pequenos vislumbres de sua vida, ainda há certo mistério envolvendo o período. “Ele passa essa mensagem não tão clara, não tão direta, e desaparece sem dizer o porquê. As pessoas ficaram num limbo. Os fãs continuaram ouvindo a obra dele, mas nós artistas não sabíamos o que fazer, se era correto fazer alguma coisa. Pelo menos isso é um entendimento que eu tenho”, explica. “Quando ele falece em 2017, começa um ciclo de celebração, de memória e de homenagens. No meu entendimento de tudo que eu pesquisei, de tudo o que eu vi e do meu coração, eu acho que ficou aquele esse buraco desses dez anos. Quando ele partiu em 2017, sinto que os artistas puderam se aproximar de uma maneira que não fosse desrespeitosa.”
“Uma coisa que a gente tem que trazer para o definitivo da nossa história, é que ele é um dos grandes nomes da nossa música popular brasileira. Na minha opinião, da mesma alçada do Chico Buarque, Caetano Veloso e Gilberto Gil. Pra mim, só é uma pessoa mais complexa, vamos dizer assim. Ele tem seis planetas em escorpião, e o escorpião morre e renasce diversas vezes. Uma vida não muito linear: ele começa querendo ser padre, aí vai estudar medicina, tenta a carreira de artista, vem pra São Paulo, estoura e no final faz esse autoexílio. O Nelson Motta fala muito isso pra mim, que ele ainda é subestimado dentro desse panteão da música brasileira, sabe?”
Os arranjos produzidos pela própria artista e por Fabá Jimenez são minimalistas e impactantes. A obviedade é deixada de lado para dar espaço a novas nuances para as composições do artista. “Acho que o fato de ter poucos elementos acaba por ressaltar a voz, a interpretação. E esse foi o desafio. As músicas versam geralmente sobre paixão, catarse e reflexão social. Exige uma compreensão ampla das camadas do coletivo e suas intersecções. Apesar de muitas metáforas e poesia, também traz uma literatura direta e acessível. É um universo bastante complexo e há que se despir para mergulhar nele”, analisou a cantora na época do lançamento.
Ana tem um amigo que fala que a “voz feminina relendo um clássico da música popular brasileira é como um portal”. A partir da sua musicalidade e à sua maneira, ela também aborda o tipo de assinatura proposta para as canções que já rondam o imaginário brasileiro.
“Meu amigo fez o paralelo de Caetano e Gal, Roberto Carlos com a Maria Bethânia, a Elis com o Belchior. Inclusive, a Elis seria um mega portal, já que vários compositores passaram por ela”, explica. “Nós somos mulheres. Por mais que eu seja uma mulher branca, cis, bissexual e magra, no recorte de privilégio, eu ainda sou uma mulher e o Belchior é um homem. Existe um cenário de vivência de opressões diferentes, a gente conhece a vida por um outro ângulo que já se estabelece por estrutura social. Eu quis trazer uma delicadeza, uma sutileza, sem abrir mão da profundidade.”
Ela acrescenta: “Isso faz parte de uma reflexão pessoal da minha vida de entender que eu passei muitos anos gritando, sabe? Quando vejo vídeos dos meus shows antigos e ouço alguns discos meus, [lembro que] eu estava numa crise existencial com meu canto. Eu cheguei num ponto da minha vida que eu entendo que o grito às vezes é extremamente necessário, mas quando você grita demais ninguém te ouve”, reflete a cantora, que faz um paralelo com uma história de Cássia Eller com o filho Chicão. Aos cinco anos, o garoto questionou a mãe: “Quando é que você vai parar de gritar e começar a cantar?”
“Quando Belchior entrou na minha vida, eu estava no ápice dessa crise que eu precisava recuperar meu canto. Foi exatamente nesse momento que as músicas do Belchior chegaram na minha vida e esse disco saiu dessa forma que é diametralmente oposto à energia dele. Se você ouve as gravações dele, elas são muito catárticas, muito enérgicas, muito aguerridas do coletivo, da mudança e da necessidade do reconhecimento. O disco ‘Alucinação’ é um grito de quem quer ser reconhecido pela sua genialidade. Então, eu estava num momento completamente diferente da minha vida. Acolhi essas músicas dialogando muito com esse feminino que é o feminino do útero, do interno, do subjetivo interno. É curioso isso porque eu acho que se alguém buscar esse disco imaginando ouvir versões iguais a Belchior ou mesmo da Elis são vem pra fora também, é uma outra proposta, um outro convite, um outro olhar, é um prisma diferente daquele diamante colossal que é a obra dele”.
“Essa é uma coisa que não falei em entrevista nenhuma, sobre essa crise existencial do meu próprio canto”, revela.. “Se eu tivesse em uma outra fase da minha vida, provavelmente esse disco e essa live seriam muito mais gritados. Seria muito mais enérgico como é o Belchior mesmo. Mas me encontrou num momento diferente e saiu dessa forma, o que acho positivo. Eu gosto de ouvir essa Ana que aparece sem muita firula vocal, sem muito excesso e mais centrada na letra. Isso é uma coisa que eu queria fazer muito com o Belchior, queria que a letra submergisse e ficasse em primeiro plano. Que não fossem os arranjos, a banda, o solo do músico. Eu queria que a epítome do projeto fosse a letra, a letra dele.”
Em conjunto do álbum, delicados visualizers dirigidos por Ariela Bueno também foram lançados. Anteriormente, Ana também divulgou os clipes de “Alucinação”, com participação de Maria Casadevall, e “Coração Selvagem”, no qual contracena com o ator Lee Taylor. Os registros “ajudaram bastante a ilustrar a densidade da riqueza poética do Belchior”. Já para o vídeo de “Sujeito de Sorte”, 44 artistas contribuíram para o registro, incluindo Elza Soares, Ney Matogrosso, Wagner Moura, Zélia Duncan, Elisa Lucinda, Marcelo Jeneci, entre outros.
Questionada sobre o desdobramento artístico proposto pelo trabalho audiovisual do projeto, Cañas reflete: “Acredito que também sejam recortes da pandemia. Por exemplo ‘Sujeito de Sorte’, que é um clipe que tem mais de quarenta artistas feito com celular nas suas casas. É quase como uma fotografia da pandemia. Daqui a cinco anos, a gente pode olhar esse clipe e falar ‘Nossa, naquele momento a gente estava tão fodido, cara. A gente estava acabado, vivendo o ápice do pior momento das nossas vidas’. Então, foi um diálogo com o nosso tempo que enriqueceu muito o projeto”.
Em 25 de outubro, Ana fez seu debute como apresentadora do programa “Sobrepostas”. Criado e dirigido por Lívia Cheibub e Martina Sönksen, a exibição acontece no Canal Brasil e no Globoplay.
Em cada episódio, a cantora realiza conversas francas sobre sexualidade feminina, prazer e autoconhecimento. “A real é que os dois projetos têm tudo a ver. O universo belchiorano é bastante sexual (‘Quero gozar no seu céu / Pode ser no seu inferno’). A sexualidade feminina ainda é um tabu em 2021 e Belchior já falava sobre isso em diversas músicas, há 40 anos. Apresentar um programa sobre esse tema na televisão conversa com a sua obra, sem dúvida” afirmou a artista no período da estreia.
“Acredito ser um programa que realmente ajuda a construir uma nova narrativa para sexualidade feminina, que ainda é um tabu em 2021. É impressionante quando a gente fala em números, por exemplo, existem várias pesquisas que apontam que 60% das mulheres ainda não tiveram orgasmos. Isso é uma coisa que você pensa não ser possível, mas é possível quando a gente pensa em opressão, patriarcado, machismo, feminicídio e tudo que ronda e cerceia a sexualidade. A sexualidade é um lugar de empoderamento, de liberdade, de autoconhecimento e transformação profunda”, afirma. “A forma como o programa está feito vai mexer muito nesse lugar de trazer uma nova perspectiva. É basicamente um programa de entrevistas com mulheres diversas. A gente fala com mulheres trans, cis, gordas, pretas, pessoas não binárias, mulheres com deficiência física, mulheres soropositivas… tem um escopo muito grande interseccional que eu acredito que é o único feminismo possível, a gente trazer as diferentes vulnerabilidades. O tema dessa primeira temporada são as primeiras vezes. O assunto é muito vasto, dá pra gravar cinquenta temporadas pra falar sobre sexualidade feminina.”
Adentre no universo de Belchior a partir da voz e perspectiva de Ana Cañas:
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